domingo, 25 de janeiro de 2015

Mise en garde

Voltando às questões monetárias, as quais, por reflectirem as tensões económicas e o choque de interesses à escala mundial, constituem um bom indicador do momento que actualmente se vive. Ramos-Horta partilhou no seu blog uma notícia do The Guardian, sobre o encontro de Davos, onde os oligarcas mundiais se costumam reunir para trocar as impressões sobre o andamento dos seus negócios.

Os sinais pressentindo que algo vai mal avolumam-se: até a insuspeita Cristrina (que foi cooptada depois de terem tramado DSK com um escândalo sexual, só porque, precisamente, alimentava um discurso «alarmante»), à frente do FMI, avisa que a bolha que se dedicaram a alimentar à lagardère, pode estourar a qualquer momento, despertando o fantasma de Marx, que previa que o capitalismo continha, em si próprio, as sementes da sua própria destruição...

Efectivamente, o capital precisa não apenas de ganhos de escala ou de produtividade, mas igualmente de procura solvável. Já Ford quis dar o exemplo, potenciando o salário dos seus empregados, para que pudessem adquirir, eles próprios, o seu modelo T...

A massa monetária cresceu sustentavelmente, até à Primeira Guerra, baseada ainda no modelo colonial e europeu; após essa Guerra, voltou a crescer, graças a mais avanços tecnológicos já liderados pelos EUA, que criaram expectativas um pouco loucas e eufóricas, as quais levaram a uma esquizofrénica especulação raiando a pura aldrabice, cuja rectificação, graças a novos acordos sociais e a outra Guerra mundial, levaram mais duas décadas, a que se seguiu novo período de crescimento sustentado, com um certo equilíbrio capital-trabalho, de certa forma garantido pelas tensões da guerra fria e pelo equilíbrio do terror nuclear. As grandes despesas da guerra do Vietnam e o impacto da crise petrolífera de 1973, obrigaram os EUA a abandonar, nesse ano fatídico, a garantia ouro do dólar.

Durante estes anos de crescimento, a prudência herdada da crise anterior foi-se perdendo, tendo a própria indústria passado a fomentar o crédito como forma de promover as suas vendas. No entanto, como todas as «bolhas», esta também teve o seu refluxo, contendo em si as sementes da sua própria etc, etc. Na concepção simplista do «Engenheiro» Sócrates (que corresponde precisamente ao cerne do paradigma em colapso), as dívidas «não são para pagar». Muitas famílias conhecem o esquema: ir fazendo empréstimos cada vez maiores, para pagar os anteriores. No entanto, esse género de comportamento comporta, evidentemente, um risco sistémico. Ao entrar em refluxo, o saldo tende a evoluir negativamente, entre o capital e a economia real, dando origem à contracção da massa monetária em circulação, à deflacção e à crise. Isso foi ainda, durante algum tempo, contrariado pelo aumento da circulação de dinheiro virtual, primeiro sob a forma de cartões de crédito, depois com os meios de pagamento electrónicos.

A queda do Muro, o lançamento do Euro, que se pretendia viesse a fazer frente ao dólar como moeda de troca internacional, coincidiram com mais uma «aliança» mundial liderada pelos EUA, desta vez, à falta de contra-ponto, tomando um inimigo esquivo e imaginário. Os EUA são peritos nesse «jogo»: à falta de ameaças, inventam-se, de todas as peças, se necessário. Em 2008, começaram a rebentar as bolhas financeiras mais evidentes... deixando, como se sabe, a careca à mostra em muitos países. Entretanto, um outro factor veio influenciar o mercado financeiro: a sua banalização informática, que colocou ao alcance de qualquer um o acesso instantâneo à negociação, à escala global, de activos financeiros, cujos mecanismos de alavancagem vieram igualmente amplificar a massa monetária, adiando uma eventual ruptura do modelo.

A China, como país emergente, tem absorvido, até agora, a maior parte da emissão de dívida americana, substituindo o Japão nesse papel. Ou seja, o actual modelo era insustentável por muito mais tempo, apesar do facto de a China não estar interessada em acabar com um status quo internacional que julga favorável à manutenção dos seus interesse, continuando a comprar dólares, para não depreciar o imenso stock que já detém, no pressuposto de que esta moeda lhe faculta o acesso às matérias-primas de que necessita: estava apenas a financiar o seu próprio crescimento, sub-indexando-se ao dólar. Esse foi o problema: o desafio do euro, que era partilhar com o dólar o papel de moeda de referência internacional parece não ter dado resultados, face aos problemas sul-europeus e a uma crise de confiança. Estava portanto na altura de uma valente chicotada psicológica, ao nível de quando enterraram unilateralmente Bretton Woods, baseados na sua própria supremacia.

O dólar auto-sustenta-se, ou seja, como moeda de referência, os Estados Unidos não precisam de ter reservas. A sua moeda É a reserva. Conta-se a piada, não sei se não terá algum fundo de verdade, de que o Fed (Banco Central EUA) mandou imprimir uma nota (exemplar único) de um trilião de dólares para colocar no sítio onde devia estar o ouro, para garantir os portadores do anúncio fiduciário: é como descascar uma cebola, para encontrar... a cebola! Por isso, a desvalorização face ao Euro, devido a uma grande «responsabilidade» financeira europeia, podia colocar em causa o sistema. No último trimestre do ano, começou a fazer-se sentir no preço do petróleo a decisão de deixar de comprar petróleo, tomada pelos EUA, os quais, após uma campanha de substituição dos combustíveis fósseis por energias limpas, se decidiram pela auto-suficiência. A [pouca] pressão da [fraca] procura passou portanto para o Euro, que encetou uma trajectória descentente: para comprar um euro eram necessários cerca de $1,40 há três meses atrás, bastando agora pouco mais de $1,10.

No entanto, será que os tecnocratas alemães, à frente do BCE, se apercebem das potencialidades do jogo que, para já, estão a perder? Com o enclausuramento americano intra-fronteiriço (a factura energética era uma importante fatia da sua Balança de Pagamentos), a massa monetária real (não especulativa) em circulação global passou a ter origem apenas europeia e extremo-asiática. Fará sentido continuar a pagar petróleo em dólares, se estes se auto-excluiram? Se os americanos não compram petróleo, que vão cozer os dólares com batatinhas. Talvez a ideia do Kadafi [que, eventualmente, o levou à morte] seja plausível, de retorno a um padrão ouro (uma moeda «certificada») para as aquisições internacionais de petróleo... No entanto, a monarquia saudita [cujo petróleo aflora a custos de produção de $5] parece ter sido cooptada pelos EUA, inviabilizando a eficácia da OPEP. As tensões monetárias parecem ser denunciadas pela cotação do ouro, a qual, desde o início do ano, tem estado a crescer sustentadamente. 2008 -> 2015, notam-se algumas semelhanças, nos padrões gráficos, no par Euro/Dólar, no Ouro e no Petróleo (infelizmente ainda expressos em dólares, triangulando e confundindo os dados). Foi o fim daquele que ficará conhecido, na história da Economia, como um ciclo de sete anos. Sete e sete são quatorze e mais sete vinte e um... Será por isso que os presidentes franceses cumprem um septenato? O que reserverá o futuro?

Mas voltando ao artigo: «capitalismo inclusivo»? O que é isso? Isso vende-se? O capital não tem desejos afetivos... Quer lá saber de outra coisa a não ser a sua própria reprodução. Se, em 1944, quando os Estados Unidos deram a primeira machadada na credibilidade e sustentabilidade do sistema financeiro mundial, tinham peso e legitimidade para o fazer, ao falarem das fortes expectativas de crescimento geradas pela reconstrução europeia; o mesmo não se aplica já sete décadas depois, em que a expectativa se reduz apenas a um lento atrofio económico, gerado pelo refluxo financeiro.

Face à escassez monetária, o grande desafio para as pessoas consiste, para já, à falta de uma nova Ordem mundial, em desenvolver formas não monetárias de cooperação e de criação de valor, fazendo apelo à imaginação e à criatividade, recorrendo, entre outros, às potencialidades das novas tecnologias de comunicação em rede.

sábado, 24 de janeiro de 2015

Parente pobre

Face aos números apresentados para a emissão de dívida 2015 pela UEMOA, segundo a France Presse, confirmam-se os receios que tinha enunciado, face à chegada discreta do Presidente, finda a cimeira. Como se adivinhava, para quem consegue ler nas entrelinhas, a dívida foi consolidada, com a contracção da emissão face ao ano anterior, em cerca de 22,4%.

Publico aqui uma tabela, na qual, aos números publicados, associei a população dos países grosso modo (com um incremento quando as estatísticas demográficas são antigas), isto tudo para fazer um cálculo per capita da emissão, que vamos considerar uma aproximação da massa monetária.


O que se constata é que a Guiné-Bissau, um país litoral, parece ter uma economia muito mais robusta que os países do interior. Apenas para comparação, o topo da lista vai para a Costa do Marfim, a menina dos olhos de Paris, apresentando uma emissão per capita três vezes maior e o Senegal o dobro.

O Mali, sendo um país interior, surge com uma emissão muito superior ao seu peso económico, ao nível do Senegal, o que se poderia justificar pelas despesas de «reconciliação» e de gestão da crise... [enfim, uma prioridade de Paris]. No entanto, o argumento também se poderia aplicar, com toda a propriedade, à Guiné-Bissau, que sofreu um bloqueio e já foi prejudicada em anos anteriores por essa razão.

O eixo de solidariedade da União, pelos vistos, não é suficiente para defender os interesses da Guiné-Bissau, que parece estar a ser sub-valorizada no contexto sub-regional: e a ser penalizada na sua verdadeira dimensão económica e estratégica. Suficiente para dar que pensar...

Não estará a Guiné-Bissau a ser um «financiador líquido» da UEMOA?

PS Questões monetárias foram igualmente recentemente discutidas em Davos, o que motivou a partilha de um interessante artigo por parte de Ramos Horta. Estou a preparar um breve comentário sobre o assunto, a uma escala global.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Apelo do Didinho

O Bom senso recomenda COMPROMISSO e RESPONSABILIDADE a TODOS! Não se deve tentar enganar os próprios guineenses, nem tão pouco a Comunidade Internacional, os Parceiros, os Doadores e os Investidores, de que está tudo bem, até Março, altura da realização da Mesa Redonda de Doadores, e que depois disso, pode continuar a "luta interna" no país...

Não, a Guiné-Bissau dispensa essas "lutas internas"; os guineenses dispensam essas "lutas internas" e a Comunidade Internacional também dispensa essas "internas"!

Chega, meus irmãos!

Foi criado um Executivo de Consenso Parlamentar, designado de Governo Inclusivo, à margem do estabelecido na Constituição da República, tendo em conta os resultados eleitorais de uma maioria absoluta conseguida pelo PAIGC.

Temos três Órgãos de Soberania de âmbito político, se assim podemos dizer, dos quatro que sustentam o Poder do Estado, representados por dirigentes do PAIGC partido vencedor das eleições legislativas e partido que apoiou a candidatura do vencedor das eleições Presidenciais, ou seja: O Presidente da República é um alto dirigente do PAIGC bem como quem o substitui em primeira instância, concretamente, o Presidente da Assembleia Nacional Popular.

Presidente da Assembleia Nacional Popular que, também é alto dirigente do PAIGC e segunda figura na hierarquia do Estado, depois do Presidente da República.

Um Primeiro-Ministro que é o Presidente do PAIGC ou seja o Partido vencedor das eleições legislativas e que apoiou o candidato e vencedor das eleições para Presidente da República.

Posto tudo isto, devemos questionar:

O que está a promover "lutas internas" entre as autoridades políticas; entre as instituições do poder político na Guiné-Bissau, quando nem sequer há oposição no Parlamento;

Quando nem sequer há interferência das Forças Armadas nos assuntos de ordem política do Estado;
 

Quando a Comunidade Internacional e os Parceiros de Desenvolvimento têm mostrado vontade e interesse em ajudar o país;

Quando os guineenses e os amigos da Guiné-Bissau começam a ganhar entusiasmo e confiança para, cada um à sua maneira, mas num "PROJECTO COMUM" de GUINENDADI, responderem às solicitações que as necessidades de toda a ordem dão a conhecer, naturalmente...

Quando ninguém vê razões para nenhuma "luta interna"... penso eu que, as autoridades guineenses devem rever os juramentos feitos aquando da tomada de posse, bem como, as promessas e os manifestos eleitorais apresentados aos eleitores guineenses.

Haja humildade suficiente, para que, todos se respeitem mutuamente e que a convivência institucional seja motivada pela razão de servir uma Pátria, um Povo e as populações, independentemente das suas origens e motivações, que escolheram o nosso país, para viver e trabalhar!

Não podemos continuar a desperdiçar oportunidades de desenvolvimento, quando não há conflito armado no país.
 

Não podemos continuar a incentivar conflitos institucionais, em nome de interesses pessoais.
 

Não devemos continuar a pensar que, os "outros" têm OBRIGAÇÕES connosco e, por isso, façamos o mal que fizermos, estarão eternamente disponíveis e prontos a satisfazer os nossos caprichos...

Façam o favor de se entenderem, conversando, na base do respeito, da tolerância e tendo em conta, o juramento de todos serem fiéis servidores do ESTADO e do POVO.

Positiva e construtivamente,


Didinho 23.01.2015

Mensagem de agradecimento

Este blog acaba de registar como comentário, da parte do Director do INEP, a seguinte mensagem, que transcrevo:

Caro José

Muito me honra e ao INEP a oferta de tamanha preciosidade que acaba de fazer. Quero agradecer-te o gesto e a magnanimidade, pois só uma pessoa de vistas largas como as que possuis é capaz de compreender a importância de que se reveste uma obra destas. É pois com todo o prazer e honra que aceito receber o livro, em nome da Biblioteca Pública do INEP.

Grato

Leopoldo Amado

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Transparência dos inocentes?

Talvez Sua Excelência o Presidente da República José Mário Vaz, em abono da transparência que tem defendido, pudesse explicar aos guineenses o seu entendimento da declaração adoptada na cimeira de Cotonou, que se propõe «preservar o nível de endividamento assegurando a qualidade e a sustentabilidade da dívida pública no seio da UEMOA».

[esse critério «de consolidação» parece suficientemente vago, mas decerto servirá para prejudicar a Guiné-Bissau, cuja percepção de «sustentabilidade» é tendencialmente nula).

A Guiné-Bissau é pequena demais para influenciar as políticas da união monetária regional. No entanto, no contexto da desvalorização do Euro face ao Dólar, e do carácter financeiro pós-colonial e desactualizado do «pacto» que deu origem à indexação a essa moeda (herdada do franco) da massa monetária da UEMOA, é questionável se fará algum sentido preservar essa ligação via Banco de França, sobretudo agora que parece que este foi tomado de assalto por germanófilos... (os quais, como se sabe, são completamente avessos à criação de moeda).

Será o silêncio da Presidência justificado por não ter conseguido obter os financiamentos que desejava, nas reuniões em que Sua Excelência foi recebida? Não haverá sobreposição de competências, em relação à politica do Primeiro-Ministro, quando fala em «projectos de desenvolvimento»? Ou cada um desenvolve os seus? Não haverão sinergias, ou (para utilizar um vocabulário mais adequado aos destinatários) economias de escala, a aproveitar, entre esses projectos?

Se, por acaso, se viesse a revelar interessante em termos negociais, para o País, equacionar a presença na União Monetária (não na económica, claro!), como poderiam ser tomadas as medidas necessárias, se os governantes andam ostensivamente de candeias às avessas e não se entendem? Quem cuida dos interesses da Guiné-Bissau?

Ver O Democrata

42 anos de eterna saudade

Gostaria de, num gesto simbólico, oferecer ao INEP uma raridade bibliográfica que consegui finalmente adquirir, para esse efeito, depois de muito regatear com o alfarrabista. Trata-se eventualmente do primeiro trabalho de investigação científica de um guineense a ser publicado em letra de imprensa.

Para a sua escassez e eventual desconhecimento, terá decerto contribuído o facto de esta edição ter sido mandada recolher de todas as bibliotecas públicas, em Portugal, desde que o seu autor passou a ser rotulado de subversivo e persona non grata. Estou a falar, evidentemente, de Amílcar Lopes Cabral.

O livro de que falo, publicado em 1958 pela Junta de Investigações do Ultramar, na colecção Estudos, Ensaios e Documentos, intitula-se «Acerca de uma classificação fitossanitária do armazenamento» e apresenta um prefácio de Baeta Neves, com o elogio à oportunidade e mérito do seu autor.

Agradeço ao meu muito amado irmão Leopoldo, agora à frente dos destinos da instituição, que me informe como posso entregar a minha dádiva, ou promova a sua recolha e transporte para Bissau, onde espero possa servir como pequeno contributo para a refundação dos seus arquivos, tão ofendidos durante a guerra de 1998-99.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

O riso da rosa

O ignóbil atentado do Charlie-Hebdo fez-me lembrar o obscurantismo terminal da Idade Média retratado por Humberto Eco n'O Nome da Rosa: a químio-terapia social radical recomendada pela escolástica tardia incluía a repressão do riso, vindo a culminar, mais tarde, com as barbaridades praticadas pela Inquisição (o que terá levado a um discreto mea culpa do Papa na sua recente alocução sobre o assunto, que os IBD publicaram). Tempo dos erros do magister dixit, sem lugar para a experimentação ou a ciência, bem patentes, por exemplo, nos erros crassos da geografia de Ptolomeu (mal se saía do Mediterrâneo).

O filme passa-se no ano de 1327, dois anos depois da morte de Dom Dinis, em Santarém. El Rei, casado com a mulher perfeita, uma «cátara», tentou introduzir uma síntese revolucionária com o culto do Espírito Santo, mas a reacção foi forte, apoiando-se nos desencontros filiais que marcaram o fim do seu reinado para lhe prejudicar a herança, a qual, no entanto, como símbolo e mito que era, lhe sobreviveu e se incrustou de forma indelével na identidade cultural nacional, regra geral como contra-poder.

No imaginário feminino, a Rainha Santa encarna a imagem branca, diurna, que a Igreja se esfalfou (apesar dos avisos dos Padres da Igreja) em promover como adorável modelo: a «virgem». No entanto, talvez por oposição, há que figurar o seu esposo na pintura... D. Dinis fez tudo quando quis, segundo se diz. É inconcebível a descontextualização do papel da mulher, associado à privação da sua sexualidade (uma verdadeira excisão social) criando um padrão intangível, que faz de todas as mulheres, por comparação com Maria, verdadeiras prostitutas.

Sem escape para a tentação terrena, a dialéctica católica acabou por empurrar Maria Madalena para o diabólico e muito secundário papel de contra-exemplo (contrariando as evidências do ensinamento do seu Mestre), o que viria a servir de guião a Dan Brown, para dar continuidade ao trabalho de Eco, fazendo cócegas num dos calcanhares de Aquiles do edifício da fé romana. Engraçado é que D. Dinis foi velado na Capela de Maria Madalena (embora esta pertencesse à Igreja de Santa Maria - ambas são, de qualquer forma, Maria...). É que os templários portugueses, que D. Dinis acabara de reconverter em Ordem de Cristo, tinham precisamente por madrinha Maria Madalena.

O bem, o bem, o bem... Esse discurso «teológico» formal da Igreja deu lugar a inúmeras críticas de hipocrisia e a imensas «reformas». Para além dos «amores» com Maria Madalena, muitos foram os episódios apagados (ou muito adulterados) da memória católica, por dogmas mais ou menos oportunos. É que era preciso vulgarizar e colocar os textos sagrados ao alcance do maior número... Embora, como católico, reconheça a importância civilizacional do dogma, para evitar precisamente retrocessos (os católicos andaram dois séculos a discutir o sexo dos anjos; chegando à conclusão de que, a certa altura, é necessário colocar um ponto final nas questões) ou derivas como aquelas que estão a acontecer no mundo muçulmano (o qual não é de forma alguma homogéneo, com várias identidades, sendo as mais visíveis a sunita e a chiita, mas que, por não ter o equivalente de um Papa, não é capaz de fixar um corpo dogmático estável, sendo por isso muito vulnerável às prédicas alucinadas, fundamentalistas e anti-sociais), não me impeço de pensar, de questionar, ou mesmo de elaborar opiniões.

E estou-me a lembrar de um desses episódios, que evidencia pormenores muito desencontrados dos apóstolos... o que teria levado a uma supressão selectiva. Referir-me-ei portanto apenas à versão canónica de Marcos, que nos conta a chegada de Cristo a Jerusalém (onde acaba por dar umas valentes biqueiradas nas bancas dos vendilhões que usurpavam a Casa do Senhor): ao ver uma figueira, o Mestre faz um desvio para passar por ela, dizendo que tinha fome, o que intriga bastante os Seus seguidores, pois não estavam em tempo de figos. Depois de todos terem chegado, o Mestre estendeu a mão... e, como era de esperar, não colheu figo nenhum, pois os não havia. Então, Jesus virou-se para a árvore e disse: «Nunca mais homem coma fruto teu». Mais tarde, à saída de Jerusalém, Pedro vira-se para o Mestre e aponta «Reparai, Mestre, a figueira que amaldiçoasteis secou!» Se a figueira fosse estéril, ainda se compreendia... Ora era normal que não desse frutos fora de tempo. Jesus Cristo era de uma maldade gratuita? Ou estaria o Mestre apenas a insinuar (seria só para os mais espertos?) que o «mal» também é um princípio «criativo» a considerar? Há, no mínimo, que relativizar. «E o Senhor louvou ao criado desonesto, pois os filhos da luz devem ser tão [ou mais] avisados quanto os filhos das trevas»...

O filme de Eco retrata precisamente a repressão de uma heresia, a qual, embora associada a ideias decerto generosas, se arriscava a colocar em risco a sociedade da época, concebida como comunidade dos crentes (vivos e mortos). Em Santarém, o Santíssimo Milagre foi uma magnífica obra dos franciscanos para ajudar os habitantes de Santarém a consolidar a sua fé na Eucaristia (precisamente o pomo da discórdia, ou seja, aquilo que os «hereges» negavam, estar Cristo naquele «bocadinho de pão» a que chamam hóstia)...

Engraçado é a constatação de que as derivas fundamentalistas, tanto cristãs como muçulmanas, tenham tomado por alvo as mulheres e o riso. Um bom treino para a liberdade mental é a capacidade de nos rirmos de nós próprios, de aceitarmos o ridículo (a Igreja tolerou sempre o Carnaval, muito a contra-gosto, como válvula de escape). Um dos elementos do culto legado por D. Dinis, de que ainda sobram algumas sombras na Festa dos Tabuleiros em Tomar, ou nos Açores, é igualmente a capacidade de subversão. Durante um dia, reinava o idiota da aldeia, ou uma criança, que era coroado por um dia, com pompa e circunstância, como imperador do Espírito Santo, e todos, sem excepção, lhe tinham de obedecer, por mais inconcebível ou ridícula que fosse a ordem. Há alguns (infelizmente relativamente vagos) relatos de tal culto se praticar nas carreiras dos Descobrimentos.

Estou a imaginar a Raínha Santa Isabel (tal como sua parente húngara, conhecida pelo Milagre das Rosas, um conhecido símbolo alquímico), tentando ocultar do seu marido, entre os folhos da saia, o Charlie-Hebdo: «São (só) risos, Senhor!»

PS A Igreja não se livra do fantasma da repressão albigense... Coincidência (ou não), foi no dia de Madalena que se deu o episódio de Béziers, durante o qual um dos guerreiros teria perguntado ao legado papal, antes do assalto (que seria fulminante), como fazer para distinguir quem era ou não herege, ao que este teria respondido: «Matem-nos a todos, Deus escolherá os seus», o que foi «religiosamente» cumprido, não escapando sequer as mulheres e crianças que se haviam refugiado na Catedral. Uma nota ainda, para os mais atentos, a quem não escapará a «fuga» à linha editorial deste blog, que se ocupa essencialmente de assuntos da Guiné-Bissau: foi uma certa irritação, contra a atitude do Presidente do Senegal em proibir a circulação do Charlie-Hebdo (bem como de certas pessoas que parecem querer branquear o atentado), a que não será decerto alheia a circunstância de ter bebido uns valentes copos de tinto (pois, como mostrou a Raínha, nem só de pão vive o homem [e a mulher]: também precisam de rosas, de risos e de gozo): talvez por isso o texto esteja denso, aparentemente confuso e com pouco nexo, mas o assunto é complexo (e não estou a falar de sexo, contrariamente ao que algumas mentes menos corteses possam pensar). Queiram perdoar, mas enfim: jorrou!

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Choque

Estou de luto pelo meu desenhador francês de cartoons preferido. Habituei-me, ao longo dos anos, a acompanhá-lo no Nouvel Observateur, cheguei a comprar um ou outro número do Charlie-Hebdo (ainda conservo pelo menos um exemplar) em deslocações a Paris. Depois de Reiser, de quem também era admirador incondicional, foi a crítica mordaz de Wolinski, a sua sátira solta e corrosiva (da qual se desprendia uma saudável libertinagem em que os franceses são mestres), que durante muito tempo me reconciliou com a França. Para além do seu delicioso cartoon semanal no Nouvel Obs, ilustrava por vezes grandes reportagens, ou oferecia umas deliciosas pranchas a mais nalgum suplemento...

Em meu nome pessoal posso dizer que, sentindo a humilhação do mundo (e do muçulmano em particular) com a imposição da nova ordem mundial pós queda do muro, compreendi, na manhã de 11 de Setembro, as razões identitárias na origem do ataque ao símbolo. Hoje, sinto-me chocado. Wolinski era um símbolo para mim. Se a 11 de Setembro conseguia identificar-me com os executantes, hoje identifico-me com a vítima. Um ataque ad hominem contra um artista? O terrorismo tem destas coisas. Ganha quando nos consegue despertar uma raiva cega. Recuso deixar-me levar pela fúria.

Este ataque é especialmente grave pelo alvo que encarna, que é evidentemente a liberdade no mundo ocidental, pretendendo lançar um choque de civilizações. Resta saber se foi apenas obra de um par de alucinados, ou de alguma maléfica organização criada com esse mesmo fim. Resta-nos rezar para que os irmãos muçulmanos transviados em intolerâncias desmerecedoras dos ensinamentos do Profeta (as quais não podemos extrapolar para o conjunto da comunidade dos crentes), retornem ao caminho da razão e não mais pratiquem barbaridades em Seu nome.

De qualquer forma, tinha deixado aqui neste blog, há pouco mais de um mês, a minha opinião de que o risco de atentados tinha subido exponencialmente nos últimos tempos... depois do lançamento da operação dunas.

O direito ao bom nome

A Guiné-Bissau, com o seu glorioso passado de luta anti-colonial, tem direito ao seu bom nome, a ser tratada com respeito: se houve vitórias africanas realmente assertivas, essas foram decerto, no campo militar, Amílcar Cabral, no campo humano, Nelson Mandela, e, no campo político, Tomás Sankara.

A importância da Guiné-Bissau não pode ser medida ao «quilómetro quadrado». Basta considerar a materialidade da sua comunidade virtual de opinião, entre redes sociais e de blogues, para constatar que está muito à frente. Uma breve pesquisa a outros países da sub-região, de expressão francesa e inglesa, mostra que as suas comunidades virtuais estão ainda num estado muito incipiente e embrionário, ao nível de comentários alojados nalguns jornais com edição electrónica (ou seja, como já estavam os guineenses há mais de uma década, e hoje o progresso é muito rápido)!

[Isso traduz o efeito de uma geração formada em liberdade e esperança, mas que, infelizmente, não conseguiu reproduzir-se ou consolidar o impulso vital vindo de Cabral, sangrando a Nação os seus melhores quadros em benefício de uma diáspora de ouro, deixando o país à deriva em termos de educação e de futuro, como alertava Miguel de Barros há pouco tempo, em Lisboa. Não se estará perante um ponto de não retorno?]

Tal como os países, como identidade colectiva, têm direito ao bom nome (independentemente de se apontarem eventuais erros), não devendo ser ofendidos por terceiros (ainda para mais quando se dizem irmãos) também para os cidadãos e as cidadãs, como identidade singular, esse direito é inalienável, sendo altamente recomendável que seja respeitado para uma vida social saudável. Está na hora da guineendade sair da calabassa. De respeitar os nossos tempos de convivência, valorizando e consolidando a identidade comum. De semear o amor e não o ódio. Apostar naquilo que une e identifica, como os valores da diversidade e da tolerância. De fazer algo firme e duradouro pela terra.

Nô djunta mon.

sábado, 3 de janeiro de 2015

Desidentificação radical

A CPLP não passa hoje de uma reles prostituta (para evitar aqui neste blog o saudável e mais que justificado vernáculo). Transformada em Agência de promoção dos pseudo-interesses económico-paranóicos de José Eduardo dos Santos, o seu Secretário Executivo ainda tem a lata de vir considerar «importante que cada cidadão de países da CPLP sinta a existência da organização, com a qual se identifiquem»...

«Não haverá nenhuma solução positiva para a Guiné sem o concurso de Angola»? Quem lhe encomendou o discurso? O senhor Secretário Executivo precisa de ler os estatutos da sua própria organização, que estipula, entre outros, como princípios fundamentais, a igualdade entre Países e a não ingerência nos seus assuntos internos. Que raio de pretensão, a de Angola querer apresentar-se publicamente como salvadora da pátria alheia!


Depois de um discurso de Ano Novo do seu Presidente, «confessando», para consumo interno, as grandes dificuldades que o país atravessa, será que não tem mais que fazer, para ocupar o seu precioso tempo e dinheiro (que vai escasseando)? Há clara inconsistência no discurso de «liderança» de Angola na CPLP! Não constituem estas declarações uma óbvia má educação, perante o momento, que se pretendia de afirmação do Brasil?

A CPLP não apenas se desintegrou, a título de organização, como, pior, se está a transformar numa imagem negativa e simétrica (para evitar o diabólico, que poderia ser confundido com alguma ortodoxia intolerante) do espírito que presidiu à sua criação. Em vez do reforço e promoção de uma identidade linguística e dos valores universalistas a ela associados, com as inerentes vantagens económicas, assiste-se a uma radical desidentificação.