segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Teotina








Não posso deixar de partilhar uma história verdadeira. Faço-o porque me emocionei, porque não encontrei qualquer registo na net, porque me parece algo digno de memória. Para além da memória das 2 ou 3 testemunhas oculares que ainda vivem, uma das quais em Santarém, de quem a ouvi. Passa-se em Mondim da Beira, a poucos Km de Lamego, no fim da Segunda Guerra Mundial. São, aliás, duas histórias, vistas pela mesma pessoa, da janela do seu quarto...
O senhor Zé, ainda um rapaz novo, tinha uma mula, que usava como meio de transporte. Maltratava muito o bicho usando de pauladas, por tudo e por nada... Fazia impressão vê-lo chegar e bater no coitado do animal sem qualquer razão aparente. Um dia, a mula, que até aí nunca dera provas de irascibilidade ou de ser especialmente teimosa para além da natureza própria deste género de híbridos animais, deve ter achado que era demais! Abocanhou o senhor Zé pelo músculo do braço e, sem qualquer ruído, enterrou a boca e começou a sugar-lhe o sangue. A quem tentava aproximar-se para acudir ao pobre coitado do senhor Zé, dissudia com um olhar de fúria e ameaças de coices, embora sem nunca se distrair do que estava a fazer. Ao senhor Zé, deixou-o depois cair, já morto e sem pinga de sangue. Um vizinho foi buscar uma caçadeira e abateu a endemoninhada mula.
Precisamente nesse ano, na quinta do lado, morreu a vaca, ao parir. O agricultor reuniu os filhos para discutir o futuro da bezerrita, sugerindo vendê-la, na feira, pois não havia maneira de a criar. A filha mais nova, Teotina, então com 12 ou 13 anos, avançou e disse ao pai que ficasse descansado, que a criava ela, ao peito. E assim fez... Se seu pai não era rico nem abastado, era remediado, não faltando nada lá por casa. Sobrava mesmo algum dinheiro ou bens, que o pai repartia pelos irmãos na medida que lhes competia, não pelo seu simples nascimento (como hoje se vê), mas sim pelo trabalho que cada um prestava.
Tudo o que Teotina ganhava, distribuía pelos pobres e carenciados. Se faltava pão nalgum casebre, já se sabia que a Teotina era a primeira a saber e lá preparava um cestinho de verga onde colocava alguns géneros de primeira necessidade para acorrer aos aflitos. Viam-na passar sempre a pé, alegre com os seus cestinhos, que chegava a entregar em aldeias bem distantes. Ao Domingo, preparava umas broas grandes, do tamanho de um pão, feitas de mistura de milho com centeio e outros cereais que conseguia arranjar, que eram uma delícia. Postava-se à porta da igreja e à saída da missa todos os pobres se regalavam e tiravam a barriga de misérias...


A bezerra criou-se tão bem que se transformou numa bela vaca. Teotina levava-a a passear ao lameiro todos os dias para que pudesse comer sempre erva fresquinha. Tiotina aproveitava todo o seu tempo: no caminho para o lameiro, atava a vaca à cintura, com uma corda, para ficar com as mãos livres para poder ir tricotando meias de lã para os pobres.
Um dia, indo com a vaca para o lameiro pelo silêncio do caminho, ao passar em frente à garagem do senhor Rufino, que consertava os modernos automóveis e carros praça, que então se usavam, o filho ligou um dos carros que estavam a arranjar... A vaca assustou-se de tal maneira que disparou numa correria desabrida, apavorada e levando a pobre da Teotina de rojo pelos caminhos, de volta a casa, sem que ninguém lograsse travá-la. Ali chegou já muito desfigurada, acabando por partir o pescoço, contra uma pedra que fazia cotovelo. A morte de Teotina impressionou muito a aldeia, as pessoas quotizaram-se e ofereceram um magnífico vestido branco, de noiva. A história circulou, em quadras que o povo cantava pelas feiras, último estertor da época de transmissão oral, então sob a rude concorrência da moderna Rádio. Eis como começava:

«De luto Mondim da Beira

chora a freguesia inteira

por uma infeliz desgraçada

que uma vaca conduzia

De repente esta fugia

e por ela foi arrastada

já de rastos pelo chão

grita com aflição

Acuda-me senhor Rufino

de repente este aparece

mas a vaca não obedece

e assim segue o seu destino(...)»

Muitos anos mais tarde, depois do caixão de madeira se desfazer, o padre proibia as pessoas de irem ao cemitério em certos dias certos. Num desses dias proíbidos, chegou a lá ir o Bispo de Lamego. Depois veio-se a saber a razão de tal secretismo. Desfizera-se a madeira e o vestido, mas lá estava o corpo incorrupto a exalar um odor de santidade. Voltaram a vesti-la, e a operação tem-se repetido...